ALFABETIZAÇÃO ECOLÓGICA: O DESAFIO PARA A EDUCAÇÃO DO SÉCULO 21
ALFABETIZAÇÃO ECOLÓGICA: O DESAFIO PARA A EDUCAÇÃO DO SÉCULO 21

ALFABETIZAÇÃO ECOLÓGICA: O DESAFIO PARA A EDUCAÇÃO DO SÉCULO 21

Texto de Fritjof Capra

Fundador e diretor do Centro para Alfabetização Ecológica em Berkeley, Califórnia. Estados Unidos. É autor de vários best-sellers, como O tao da física, O ponto de mutação, A teia da vida e Conexões ocultas.

À medida que nosso novo século se desdobra, um dos nossos maiores desafios é o de construir e manter comunidades sustentáveis. Como tem havido muita confusão a respeito do conceito de sustentabilidade ecológica, acho que vale a pena refletir por um momento a respeito do verdadeiro significado da palavra “sustentabilidade”.

O conceito foi introduzido no início da década de 1980 por Lester Brown, fundador do Worldwatch Instituto, que definiu comunidade sustentável como a que é capaz de satisfazer às próprias necessidades sem reduzir as oportunidades das gerações futuras. Anos depois, o chamado Relatório Brundtland, encomendado pelas Nações Unidas, usou a mesma definição para apresentar o conceito de “desenvolvimento sustentável “

A Humanidade tem a capacidade de atingir o desenvolvimento sustentável, ou seja, de atender às necessidades do presente sem comprometer a capacidade das futuras gerações de atender às próprias necessidades.

Essas definições de sustentabilidade são importantes exortações morais. Elas nos lembram de nossa responsabilidade de passar a nossos filhos e netos um mundo com tantas oportunidades quanto aquelas que herdamos. Entretanto, não nos dizem nada a respeito de como construir, na prática, uma sociedade sustentável.

O que precisamos é de uma definição operacional de sustentabilidade ecológica. A chave para chegar a esta definição operacional está em reconhecer ecológica. A chave para chegar a esta definição operacional está em reconhecer que não precisamos inventar as comunidades humanas sustentáveis a partir do zero, mas podemos moldá-las de acordo com os ecossistemas naturais, que são comunidades sustentáveis de plantas, animais e microrganismos. Como a principal característica da biosfera é sua capacidade intrínseca de manter a vida, uma comunidade humana sustentável deve ser planejada de modo que os estilos de vida, negócios, atividades econômicas, estruturas físicas e tecnológicas não interfiram nessa capacidade da natureza de manter a vida.

Esta definição de sustentabilidade implica que o primeiro passo nesse nosso esforço para construir comunidades sustentáveis deva ser a compreensão dos princípios de organização que os ecossistemas desenvolveram para manter a teia da vida. Esse entendimento se tornou conhecido como “alfabetização ecológica”. Nas próximas décadas, a sobrevivência da Humanidade dependerá da nossa alfabetização ecológica – nossa capacidade de compreender os princípios básicos da ecologia e viver de acordo com eles.

Ecologia profunda

A palavra “ecologia “ vem do grego oikos ( casa ). Ecologia é o estudo de como a Casa Terra funciona. Mais precisamente, é o estudo das relações que interligam todos os moradores da Casa Terra. A ecologia é um campo muito vasto. Pode ser praticada como disciplina científica, como filosofia, como política ou como estilo de vida. Como filosofia, é conhecida por “ ecologia profunda “ , uma escola de pensamento fundada pelo filósofo norueguês Arne Naess no início da década de 1970. Naess estabeleceu uma distinção importante entre ecologia “ rasa “ e ecologia “ profunda “.

A ecologia rasa é antropocêntrica. Considera que o homem, como fonte de todo valor, está acima ou fora da natureza e atribui a esta um valor apenas instrumental ou utilitário. A ecologia profunda não separa o homem do ambiente; na verdade, não separa nada do ambiente. Não vê o mundo como uma coleção de objetos isolados e sim como uma rede de fenômenos indissoluvelmente interligados e interdependentes. A ecologia profunda reconhece o valor intrínseco de todos os seres vivos e encara o homem como apenas um dos filamentos da teia da vida. Reconhece que estamos todos inseridos nos processos cíclicos da natureza e que deles dependemos para viver.

Em última análise, a consciência da ecologia profunda é uma consciência espiritual ou religiosa. Quando o conceito do espírito humano é entendido como o modo de consciência no qual o indivíduo se sente conectado ao cosmo como um todo, fica claro que a consciência ecológica é espiritual em sua essência mais profunda. Assim, não é de admirar que a ecologia profunda seja compatível com a chamada “ filosofia perene“ das tradições espirituais, como a espiritualidade dos místicos cristãos, a dos budistas, ou a filosofia e cosmologia que estão por trás das tradições dos  índios americanos.

Sistemas vivos

O arcabouço científico mais apropriado para o estudo da ecologia é a teoria dos sistemas vivos. Esta teoria só agora está se apresentando de forma completa, mas tem raízes em vários campos da ciência que se desenvolveram na primeira metade do século 20: a biologia organicista, a psicologia da gestalt, a teoria geral dos sistemas e a cibernética.

Em todos esses campos, os cientistas examinaram sistemas vivos, ou seja, sistemas integrados cujas propriedades não podem ser reduzidas às suas partes menores. Embora seja possível distinguir as partes de qualquer sistema vivo, a natureza do todo é sempre diferente da simples soma de suas partes.

A teoria dos sistemas envolve uma nova maneira de ver o mundo e uma nova forma de pensar, conhecida como “pensamento de sistemas” ou “pensamento sistêmico”. Significa pensar em termos de relações, padrões e contexto. O pensamento sistêmico foi elevado a um novo patamar nos últimos vinte anos com a criação da teoria da complexidade, uma nova linguagem matemática e um novo conjunto de conceitos para descrever a complexidade dos sistemas vivos.

Exemplos desses sistemas não faltam na natureza. Todo organismo – animal, planta, microrganismo ou ser humano – é um todo integrado, um sistema vivo. Partes de organismos, como folhas e células, também são sistemas vivos. Em toda a natureza encontramos sistemas vivos dentro de outros sistemas vivos. Os sistemas vivos também incluem comunidades de organismos, que podem ser sistemas sociais – uma família, uma escola, uma cidade – ou ecossistemas.

Esses sistemas vivos são todos cujas estruturas específicas resultam das interações e interdependências de suas partes. A teoria dos sistemas ensina que todos os sistemas vivos compartilham de propriedades e princípios de organização comuns. Isto significa que o pensamento sistêmico pode ser usado para integrar disciplinas e descobrir semelhanças entre  diferentes fenômenos dentro da ampla gama de sistemas vivos.

Os princípios da ecologia são princípios de organização comuns a todos esses sistemas vivos. São os padrões básicos da vida. Na verdade, nas comunidades humanas eles poderiam também ser chamados de princípios comunitários. É claro que existem muitas diferenças entre os ecossistemas e as comunidades humanas. Nos ecossistemas não existe cultura, não existe consciências, não existe justiça, não existe equidade. Não podemos aprender nada sobre esses valores humanos com os ecossistemas. Contudo, o que podemos aprender, e devemos aprender, é como viver de forma sustentável. Ao longo de mais de três bilhões de anos de evolução, os ecossistemas se organizaram de modo a maximizar sua sustentabilidade. Esta sabedoria da natureza é a essência da alfabetização ecológica.

A teia da vida

Um dos mais importantes ensinamentos da abordagem sistêmica da vida é o reconhecimento de que as redes constituem o padrão básico de organização de todos os sistemas vivos. Os ecossistemas são compreendidos em termos de teias alimentares (ou seja, de redes de organismo); os organismos são redes de células e as células são redes de moléculas. A rede  é um padrão comum a todas as formas de vida. Onde existe vida existem redes.

Uma análise mais detalhada dessas redes vivas mostra que sua característica principal é  que são autógenas. Em uma célula, por exemplo, todas as estruturas biológicas são continuamente produzidas, consertadas e regeneradas por uma rede de reações químicas. Da mesma forma, as células do corpo de um organismo pluricelular são continuamente regeneradas e recicladas por sua rede metabólica. As redes vivas estão sempre criando ou recriando a si próprias através da transformação ou substituição dos seus componentes.

A vida na sociedade também pode ser compreendida em termos de redes, mas neste caso não estamos lidando com reações químicas; estamos lidando com comunicações. As redes vivas das comunidades humanas são redes de comunicações. Como as redes biológicas, essas redes são autógenas, mas o que geram é basicamente imaterial. Cada comunicação cria pensamentos e significados que dão origem a novas comunicações; é assim que toda a rede está continuamente gerando a si própria.

À medida que as comunicações acontecem em uma rede social, elas acabam produzindo um sistema compartilhado de crenças, explicações e valores – um contexto comum de significados, conhecido como cultura, que é sustentado continuamente por novas comunicações. Através da cultura, os indivíduos adquirem identidades, como membros da rede social.

A mudança de objetos para relações

É importante perceber que as redes vivas não são estruturas materiais, como uma rede de pescar ou uma teia de aranha. São redes funcionais, redes de relações entre vários processos. Em uma célula, por exemplo, estes processos são reações químicas entre as moléculas. Numa teia alimentar, estes processos são processos de nutrição, de organismos comendo uns aos outros. Em uma rede social, os processos são comunicações. Em todos estes casos, a rede é um padrão imaterial de relações.

Compreender sistemas vivos, portanto, nos leva a compreender relações. Este é um aspecto-chave do pensamento sistêmico. Implica uma mudança de enfoque, de objetos para relações. Compreender relações não é fácil para nós, porque é algo que vai contra o método científico tradicional da cultura ocidental. Na ciência, assim nos ensinaram, medimos e pesamos coisas. Acontece que as relações não podem ser medidas nem pesadas; precisam ser mapeadas. Podemos desenhar um mapa de relações, interligando diferentes elementos ou diferentes membros de uma comunidade. Quando fazemos isto, descobrimos certas configurações de relações que aparecem repetidamente. É a isto que chamamos de padrões. O estudo de relações nos leva ao estudo de padrões.

Matéria e forma

Descobrimos aqui uma tensão que tem sido uma das características principais da ciência e da filosofia ocidental através dos tempos. Trata-se da tensão entre duas abordagens para compreender a natureza: o estudo da matéria e o estudo da forma. São duas abordagens muito diferentes. O estudo da matéria começa com a pergunta “ de que isto é feito?  “, que leva aos conceitos de elementos fundamentais, de unidades básicas; “ à medição e quantificação. O estudo da forma pergunta: “ qual é o padrão ? “, que remete aos conceitos de ordem, organização, relações. Em vez de quantidade, envolve qualidade; em vez de medição, envolve mapeamento.

Portanto, são duas linhas de investigação bem diferentes que têm competido entre si na nossa tradição cientifica e filosófica. A maior parte do tempo, o estudo da matéria – de quantidades e componentes – predominou. Nas últimas décadas, porém, o progresso do pensamento sistêmico colocou o estudo da forma – de padrões e relações – de novo em evidência. A principal ênfase da teoria da complexidade está nos padrões. Os atratores estranhos da teoria do caos e os fractais da geometria moderna são padrões visuais. Toda a nova matemática da complexidade é essencialmente uma matemática de padrões.

Arte e educação

O estudo da matéria é o estudo de grandezas que podem ser medidas; o estudo da forma é o estudo de relações que podem ser mapeadas. Para compreender padrões, é preciso visualizá-los e mapeá-los. É por isso que sempre que o estudo dos padrões esteve em destaque os artistas contribuíram significativamente para o progresso da ciência. Talvez os dois exemplos mais famosos sejam Leonardo da Vinci, cuja vida cientifica foi um estudo de padrões, e o poeta alemão Goethe, no século 18, responsável por contribuições importantes para a biologia através do estudo de padrões.

Para os educadores, isso abre as portas para a integração das artes ao currículo escolar. Não há praticamente nada mais eficaz que as artes ( as artes visuais, a música, as artes cênicas ) para desenvolver e refinar a capacidade natural de uma criança de  reconhecer e expressar padrões. Assim, as artes podem ser um instrumento poderoso para ensinar o pensamento sistêmico, além de reforçarem a dimensão emocional que tem sido cada vez mais reconhecida como um componente essencial do processo de aprendizagem.

Os princípios da ecologia

Quando o pensamento sistêmico é aplicado ao estudo das múltiplas relações que interligam os membros da Casa Terra, alguns princípios básicos podem ser reconhecidos. Eles podem ser chamados de princípios da ecologia, princípios da sustentabilidade ou princípios da comunidade; ou podem até mesmo ser chamados de fatos básicos da vida. Precisamos de um currículo que ensine a nossas crianças estes fatos fundamentais da vida:

  • nenhum ecossistema produz resíduos, já que os resíduos de uma espécie são o alimento de outra;
  • a matéria circula continuamente pela teia da vida;
  • a energia que sustenta estes ciclos ecológicos vem do Sol;
  • a diversidade assegura a resiliência;
  • a vida, desde o seu início há mais de três bilhões de anos, não conquistou o planeta pela força, e sim através de cooperação, parcerias e trabalho em rede.

….Ensinar esse saber ecológico, que também corresponde à sabedoria dos antigos, será o papel mais importante da educação no século 21. A alfabetização ecológica deve se tornar um requisito essencial para políticos, empresários e profissionais de todos os ramos, e deveria ser uma preocupação central da educação em todos os níveis – do ensino fundamental e médio até as universidades e os cursos de educação continuada e treinamento de profissionais.

Educação para uma vida sustentável

No Centro de Ecoalfabetização da Califórnia, meus colegas e eu estamos desenvolvendo, nos níveis da escola primária e secundária, um sistema de educação para uma vida sustentável. Isso envolve uma pedagogia centrada na compreensão da vida, uma experiência de aprendizagem no mundo real que supere a nossa alienação da natureza e reacenda o senso de participação e um currículo que ensine às nossas crianças os princípios básicos da ecologia. A alfabetização ecológica está sendo ensinada hoje em uma rede crescente de escolas da Califórnia e começa a se espalhar para outras regiões do mundo. Esforços semelhantes estão sendo encaminhados no ensino superior, liderados pela Second Nature, uma organização educacional em Boston que colabora com muitas instituições de ensino para tornar a educação para a sustentabilidade uma parte fundamental da vida universitária.

Revendo os componentes principais da pedagogia que desenvolvemos, procurarei cobrir o maior número de aspectos possível, mas quero frisar que as palavras são capazes de transmitir apenas uma pequena parte da história. A verdadeira mensagem está nos rostos das crianças, em seus sorrisos, suas histórias, seus desenhos, suas poesias. Assim, recomendo aos leitores que visitem nosso site na Internet, www.ecoliteracy.org, que contém muitas fotografias, histórias e outras informações.

A horta escolar

Nos últimos dez anos descobrimos que plantar uma horta e usá-la como recurso para o preparo de refeições na escola é um projeto perfeito para experimentar o pensamento sistêmico e os princípios da ecologia em ação. A horta restabelece a conexão das crianças com os fundamentos da alimentação – na verdade, com os próprios fundamentos da vida – ao mesmo tempo em que integra e torna mais interessantes praticamente todas as atividades que acontecem na escola.

Uma das características principais das redes vivas é o fato de que todos os seus nutrientes se movem em ciclos. Em um ecossistema, a energia flui ao longo da rede, enquanto a água, o oxigênio, o carbono e todos os outros nutrientes se movimentam pelos conhecidos ciclos ecológicos. Da mesma forma, o sangue circula por nosso corpo, assim como o ar, a linfa, e assim por diante. Onde existe vida existem redes; e onde existem redes vivas existem ciclos. A teia da vida, o fluxo de energia e os ciclos da natureza são exatamente os fenômenos que as crianças podem experimentar, investigar e compreender enquanto estão cuidando de  uma horta.

A compreensão da vida em termos de redes, fluxos e ciclos é relativamente nova para a ciência, mas constitui uma parte essencial da sabedoria das tradições espirituais; não é coincidência que o cultivo de vegetais e a preparação de alimentos a partir de produtos cultivados tenham sido incorporados à prática religiosa de muitas tradições espirituais.

O cultivo de vegetais e a preparação dos alimentos são exemplos de trabalho cíclico – trabalho que tem que ser repetido indefinidamente, que não deixa marcas duradouras. Você prepara uma refeição e ela é imediatamente consumida. Lava os pratos, mas eles logo estarão sujos de novo. Planta, cuida da horta, colhe, e então planta de novo. Este trabalho é parte da vida monástica, porque nos ajuda a reconhecer a ordem natural de crescimento e declínio, de nascimento e morte, tornando-nos conscientes de como estamos todos inseridos nesses ciclos da natureza.

Na horta, aprendemos sobre os ciclos alimentares e integramos os ciclos naturais dos alimentos aos nossos ciclos de plantio, cultivo, colheita, compostagem e reciclagem. Através desta prática, aprendemos ainda que a horta como um todo está inserida em sistemas maiores que também são redes vivas, com seus próprios ciclos. Os ciclos dos alimentos interagem com esses ciclos maiores – o ciclo da água, o ciclo das estações, e assim por diante-, que são todos filamentos da rede planetária da vida.

Agricultura orgânica

Na horta, aprendemos que um solo fértil é um solo vivo, que contém bilhões de organismos vivos por centímetro cúbico. Estas bactérias do solo executam várias transformações químicas que são essenciais para a manutenção da vida na terra. Devido à importância fundamental do solo vivo, devemos preservar a integridade dos grandes ciclos ecológicos em nossas hortas e atividades agrícolas. Este princípio está incorporado aos métodos tradicionais de cultivo, que se baseiam em um respeito profundo pela vida. Os fazendeiros costumavam plantar diferentes variedades de plantas a cada ano, fazendo um rodízio de culturas de modo que o equilíbrio do solo fosse preservado. Os pesticidas não eram necessários, já que os insetos atraídos por uma planta poderiam não voltar no ano seguinte. Em vez de recorrer a fertilizantes químicos, os fazendeiros enriqueciam suas terras com estrume, devolvendo assim ao solo a matéria orgânica para completar o ciclo ecológico.

Há cerca de quatro décadas, essa prática milenar de agricultura orgânica mudou drasticamente com a introdução maciça de fertilizantes químicos e pesticidas. O uso de produtos químicos perturbou seriamente o equilíbrio do solo, o que teve um grave efeito sobre a saúde humana, já que qualquer desequilíbrio do solo afeta os vegetais que ali se desenvolvem e, portanto, a saúde das pessoas que deles se alimentam. Felizmente, um número cada vez maior de fazendeiros está se dando conta dos perigos da agricultura química e voltando a usar métodos orgânicos, ecológicos. A horta da escola é o lugar ideal para ensinar a nossas crianças as vantagens da agricultura orgânica.

Um senso de lugar

Através da horta também nos tornamos conscientes de que fazemos parte da teia da vida; com o tempo, a experiência da ecologia na natureza nos proporciona um senso de lugar. Nós nos damos conta de que estamos inseridos em um ecossistema, numa paisagem com flora e fauna peculiares, em um sistema social e uma cultura próprios.

Para as crianças, estar na horta é algo mágico. Como diz um dos nossos professores, “uma das coisas mais interessantes sobre a horta é que estamos criando um espaço mágico para crianças que jamais teriam acesso a um lugar como este, nem a oportunidade de travar contato com a terra e com as coisas que crescem. Você pode ensinar tudo o que quiser às crianças, mas estar ali, plantando, cozinhando e comendo, essa é uma ecologia que toca o coração e se tornará importante para elas”.

Crescimento e desenvolvimento

Na horta, observamos o ciclo de vida de um organismo – nascimento, crescimento, maturação, decadência e morte – e o surgimento da nova geração. Através da horta experimentamos o crescimento e o desenvolvimento a cada dia. Na verdade, a compreensão do crescimento e do desenvolvimento é essencial não apenas para a horta, mas também para a educação. Enquanto as crianças aprendem que seu trabalho na horta escolar muda de acordo com o desenvolvimento e o amadurecimento das plantas, os métodos de ensino do professor e todo o seu discurso na sala de aula mudam com o desenvolvimento e o amadurecimento dos alunos.

A partir do trabalho pioneiro de Jean Piaget, Maria Montessori e Rudolf Steiner surgiu um amplo consenso entre cientista e educadores quanto ao desenvolvimento das funções cognitivas na criança em crescimento. Parte deste consenso é o reconhecimento de que um ambiente de aprendizagem rico, multissensorial – envolvendo as formas e texturas, as cores, odores e sons do mundo  real -, é essencial para o pleno desenvolvimento cognitivo e emocional da criança. Aprender na horta escolar é aprender no mundo real em sua plenitude. Traz benefícios para o desenvolvimento de cada aluno da comunidade escolar é uma das melhores formas de tornar as crianças ecologicamente alfabetizadas e, desse modo, aptas a contribuir para a construção de um futuro sustentável.

O processo de aprendizagem

Por estar intelectualmente fundamentada no pensamento sistêmico, a alfabetização ecológica é muito mais que educação ambiental. Ela oferece um poderoso arcabouço para a abordagem sistêmica da reforma escolar que hoje está sendo amplamente discutida pelos educadores. Pesquisas recentes nos campos da neurociência e do desenvolvimento cognitivo levaram a um novo entendimento do processo de aprendizagem, baseado na visão do cérebro como um sistema auto-organizado complexo e altamente adaptativo. Graças à interconectividade do cérebro, tudo que acontece a uma criança tem conseqüências diretas e indiretas. Corpo e mente, ou cérebro e mente, interagem profundamente. Por exemplo, o estresse pode enfraquecer o sistema imunológico, enquanto a descontração e o risco podem fortalecê-lo. Tocar piano ou cantar em um coral melhora o raciocínio espacial. A leitura aumenta a capacidade de abstração do aluno, e assim por diante. Toda aprendizagem é complexa, e em cada encontro os professores estão lidando com o sistema inteiro, com a criança como um todo.

Como todos os sistemas vivos, o cérebro cresce e se desenvolve. Hoje se sabe que na criança o crescimento do cérebro é acompanhado por um desenvolvimento correspondente das funções cognitivas. No córtex cerebral, o desenvolvimento não envolve a formação de novas células nervosas, e sim a criação de uma rede complexa de conexões neurais.

À medida que uma criança amadurece, as possibilidades de interconexões nessa rede neural em crescimento são praticamente infinitas. As conexões efetivamente formadas e os caminhos e funções que se tornam estáveis dependem muito do ambiente que  envolve a criança. A rede neural exibe a importante propriedade de poder alterar sua conectividade em resposta ao ambiente.

A sensibilidade do cérebro a influências ambientais é especialmente acentuada na primeira infância, quando a maior parte da rede neural está se formando. Desde que as pesquisas nesta área começaram, no final da década de 1950, tem havido amplo consenso entre os psicólogos infantis de que a exposição precoce a um ambiente rico em experiências sensoriais e desafios cognitivos tem efeitos benéficos duradouros, enquanto a privação dessas experiências pode inibir o desenvolvimento neurológica futuro. No Centro de Ecoalfabetização descobrimos que a aprendizagem na horta escolar, na cozinha, na fazenda ou no riacho é a aprendizagem no mundo real em toda a sua plenitude.

Como a rede neural altera continuamente sua conectividade em resposta ao ambiente a que a criança é exposta, crianças diferentes desenvolvem sistemas nervosos diferentes: diferentes caminhos, uma mistura diferente de funções cognitivas, e assim por diante. Em outras palavras, cada cérebro é organizado de forma singular; por isso, as crianças exibem uma grande diversidade de estilos de aprendizagem, envolvendo vários tipos de inteligência.

Outra conseqüência importante da visão do cérebro como um todo integrado, inserido em todos maiores, é a noção de que a aprendizagem não envolve apenas o cérebro e o sistema nervoso, mas toda a fisiologia do corpo. O papel das emoções, em particular, é fundamental. Na educação, as emoções sempre foram consideradas importantes, porém essencialmente distintas do raciocínio. Descobertas científicas recentes nos forçaram a mudar drasticamente esta visão. Os cientistas perceberam que emoção e cognição interagem de forma contínua, alimentando-se e moldando-se mutuamente. O que aprendemos não é somente influenciado, mas também organizado pelas emoções. Isto tudo significa que um ambiente emocionalmente seguro é crucial para a aprendizagem.

O novo entendimento do processo de aprendizagem também envolve o reconhecimento de que toda aprendizagem é fundamentalmente social. Cada indivíduo está necessariamente inserido em um sistema social, em uma comunidade. Parte de nossa identidade depende dos laços que tentamos estabelecer na comunidade e boa parte de nossa aprendizagem depende das comunidades a  que pertencemos.

Assim, o estabelecimento de comunidades saudáveis e inteligentes não só é necessário para a sustentabilidade ecológica, como também facilitar a aprendizagem. Alguns educadores acreditam que, idealmente, as escolas devem ser “comunidades de aprendizes “ onde experiências e desafios intelectuais sejam realmente vivenciados e não apenas verbalizados. Esta idéia também é totalmente compatível com nossa experiência boas na escolas de alfabetização ecológica. Observamos repetidas vezes que  a formação de comunidades é essencial para promover a alfabetização ecológica.

A busca de padrões e significados

Nesta breve revisão das pesquisas recentes sobre o cérebro e suas implicações para a educação, concentrei-me até aqui nas condições que facilitam a aprendizagem: um ambiente sensorial rico, segurança emocional e o apoio da comunidade. Agora vou falar do processo de aprendizagem em si.

Hoje se sabe muito bem que as crianças não chegam à escola como frascos vazios para serem preenchidos com informações, mas constroem ativamente seus conhecimentos, relacionando todas as novas informações a experiências anteriores, em uma busca constante de significados. Do ponto de vista evolutivo, a busca de significados está voltada para a sobrevivência e constitui um elemento básico da natureza humana. Temos uma tendência inata a dar um sentido a nossas experiências, a buscar significados. O cérebro não gosta de lidar com peças isoladas de informação.

Entendo que o significado é a experiência de um contexto, e contexto é um padrão de relações entre o objeto ou evento que está sendo estudado e seu ambiente. Logo, a busca de significado é uma busca de padrões. De fato, é isso que a pesquisa do cérebro nos revela. A busca de significado ocorre através da “modelagem”, como diria um neurocientista. Esta modelagem é inerente à fisiologia do cérebro. Grupos de células cerebrais se combinam para formar circuitos e redes neurais que funcionam em sincronia. Novas experiências e interpretações reconfiguram estes padrões automáticos. A aprendizagem é necessária quando um padrão preexistente é contestado ou rompido, e um dos motivos pelos quais essa nova aprendizagem costuma levar algum tempo para acontecer é que essas mudanças não são apenas mentais, mas também fisiológicas.

Em suas análises detalhadas do fenômeno da modelagem, os neurocientistas descobriram que as emoções são fundamentais nesse processo. Quando existe uma falta de segurança emocional, quando o sistema está afogado em hormônios de estresse, a percepção de padrões é uma das primeiras coisas a desaparecer. A percepção se reduz a objetos concretos; ocorre uma fragmentação um deslocamento do todo para as partes. Isto mostra que a segurança emocional é fundamental para que possa ocorrer á essência do processo de aprendizagem: a busca de padrões e significados.

Integrando o currículo

O novo entendimento do processo de aprendizagem sugere a necessidade de estratégias de ensino mais adequadas. Em particulares, torna evidente a necessidade de um currículo integrado que valorize o conhecimento contextual, no qual as várias disciplinas sejam vistas como recursos a  serviços de um objetivo central. Uma boa forma de conseguir esse tipo de integração é a abordagem conhecida como “ aprendizagem baseada em projetos “ , que consiste em fomentar experiências de aprendizagem que engajem os estudantes em projetos complexos do mundo real, através dos quais possam desenvolver a aplicar suas habilidades e conhecimentos.

Em nossas escolas de ecoalfabetização praticamos a aprendizagem baseada em projetos, usando como tema central  uma horta escolar ou o projeto de recuperação de um curso d’ água. Com o passar dos anos, passamos a definir currículo como “ os conteúdos e contextos que ajudam o estudante a criar significados, desenvolver comportamentos e valores e compreender o mundo”.

É evidente que só é possível integrar o currículo através da horta, ou outro projeto de orientação ecológica, se a escola se tornar uma verdadeira comunidade de aprendizagem. As relações conceituais entre as várias disciplinas podem ser explicitadas apenas se existirem relações humanas correspondentes entre professores e administradores.

Em uma comunidade de aprendizagem como essa, professores, alunos e administradores estão todos conectados em uma rede de relações, trabalhando juntos para facilitar a aprendizagem. O ensino não acontece de cima para baixo, mas existe uma troca cíclica de informações. O foco está na aprendizagem, e todos no sistema são ao mesmo tempo mestres e aprendizes. Laços de realimentação são intrínsecos ao processo de aprendizagem, e a realimentação passa a ser o principal objetivo da avaliação. O pensamento sistêmico é crucial para a compreensão do funcionamento das comunidades de aprendizagem. Na verdade, os princípios da ecologia podem ser também interpretados como princípios da comunidade.

Conclusão

Para concluir, gostaria de ressaltar mais uma vez que o pensamento sistêmico é o núcleo intelectual da alfabetização ecológica, o arcabouço conceitual que nos permite integrar seus vários componentes. Neste ensaio, examinei quatro componentes:

1. a compreensão dos princípios da ecologia, sua experimentação na natureza e a conseqüente aquisição de um senso de lugar;

2. a incorporação de insights nascidos de um novo conceito de aprendizagem, que enfatiza a busca de padrões e significados por parte da criança;

3. a implementação dos princípios da ecologia para construir e manter uma comunidade de aprendizagem;

4. a integração do currículo  através da aprendizagem baseada em projetos.

À medida que nosso novo século se desdobra, a sobrevivência da Humanidade dependerá de nossa alfabetização ecológica: nossa capacidade de compreender os princípios básicos da ecologia e viver de acordo com eles. Este é um empreendimento que transcende todas as diferenças de raça, cultura ou classe social. A Terra é nosso lar comum, e criar um mundo sustentável para nossas crianças e para as futuras gerações é uma tarefa para todos nós.

2 comentários

  1. Maria Margarida de A morim Avelar

    A publicação deste artigo está sendo minha guia na redação do meu
    TCC cujo tema é a alfabetização ecológica.
    À medida que estudo o tema torna-se mais consistente a minha opção pela educação ambiental, dentro da ótica de F.Capra,e,também, pelo Verde.

  2. Maria de Jesus Gomes dos Santos

    Nós somos uma pequena parte do Ambiente e como tal temos que está inserido no mesmo!O texto nos permite refletir sobre esse contexto natural.

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